sexta-feira, 26 de março de 2010

O outro lado

Nunca lhe escreveu. Tinha vergonha. Tinha medo que achasse foleiro. Cartas de amor já não estão na moda. Não queria parecer démodé, se a moda não ditava, ela não o fazia.
Escreveu-lhe mais tarde. Palavras amarguradas. Cheia de dor e de mágoa.
Escreveu-lhe mais tarde, depois de esquecer as partes boas. Escreveu-lhe mais tarde, quando o tempo já não podia voltar atrás.



Escreveu-lhe mais tarde, anos e anos depois, no dia em que se lembrou. Quando se lembrou do já esquecido mesmo quando chorado. Já esquecido, mesmo antes de terminar.

Naquele dia lembrou-se da simplicidade que pode ser a partilha de um vinho, da vontade de cuidar reflectida num mero jantar, da vontade de abraçar exposta num desejo.


Muitos, muitos anos depois é que se lembrou. Dos jantares a dois, onde nada mais fazia falta e se deixavam aquecer pelo vinho. E aquecia. O vinho e essa partilha. O jantar e essa conversa. A mesa e esses sorrisos.

Queriam tanto ouvir a mesma música, que esqueceram do Pedro Paixão. do Lichenstein e do José Riço Direitinho.
Queríam tanto crescer, que esqueceram os seus sonhos.
Queriam tanto a inteligência, que esqueceram as conversas.
Queriam tanto o orgasmo, que esqueceram o prazer.
Queriam tanto saber, que esqueceram do prazer da descoberta.
Queriam tanto o compromisso, que esqueceram do gostar.
Queriam a perfeição, que esqueceram ser eles próprios.
Queriam tanto ser namorados, que esqueceram a cumplicidade.
Queriam tanto não perder, que esqueceram a conquista.
Queriam tanto o final feliz, que esqueceram do presente.

Hoje, deu-lhe para isto. Para recordar. Para lembrar a parte boa. A parte em que eram felizes.

Já me tinha esquecido, mas esta semana deu-me para lembrar.


7 comentários:

Ginger disse...

Gostei imenso.
Há algo aí que me tocou.


bjs*

Su m disse...

Excelente post.

É curioso como o saudosismo e os anos podem fazer com que esqueçamos as sensações boas e recordemos e intensifiquemos apenas as partes mais custosas.

Mas ao que parece a lembrança essa, fica sempre gravada cá dentro.

mz disse...

Nunca é tarde para voltar a escrever e lembrar os melhores momentos.

bj

Lala disse...

Recordar paixões. Sabe bem. E faz bem. Mesmos que vistas 'do outro lado'!
Bela participação!!

**

meldevespas disse...

Muito bonito.
As rerlações tendem a gorar-se a frustrar-se a finar-se por culpa desse esquecimento que falas.
Amei
Beijo

Helga Piçarra disse...

É quando vasculhamos as nossas memórias, que ficamos perante a oportunidade de fazer do presente um futuro melhor. Recordar é bom, mesmo quando a recordação é menos boa. Gostei muito deste texto.

Bj :)

Mz disse...

Perde-se tanto por acharmos que um gesto pode ser mal interpretado!
Depois podemos levar anos e anos a pensar como teria sido se o tivessemos feito ou dito...

bjs